ORANGE SANDALWOOD

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4/17/2012

6. O TODO E AS PARTES




TODO-PARTES-TODO, ou WHOLE-PARTS-WHOLE, é um dos conceitos estruturantes do curriculum da Comprehensive Musicianship, e da Teoria da Aprendizagem Musical de E. Gordon. Basicamente, é um princípio que reconhece a estrutura da nossa biologia, perante o acto da aprendizagem. Analisam-se as partes de um problema, para depois integrar essas partes numa unidade maior que as contém. Qualquer objecto que se possa aprender – matéria ou pensamento – tem TODO e tem PARTES.

Esta dualidade essencial TODO/PARTES representa a dicotomia entre a visão global e a visão detalhada; entre um conceito generalizador da matéria, e os itens particulares que podemos analisar separadamente.

O TODO e as PARTES estão presentes na vagarosa formação dos conceitos durante a idade infantil. Quantos exemplos concretos de animais relativamente inofensivos de quatro patas precisamos de observar, até refinar o nosso conceito de “cão”, de forma a excluir categoricamente gatos e outros quadrúpedes? Quantas viaturas (“popós”) até diferenciar claramente uma carrinha ou um camião de um ligeiro, usando a palavra certa? Alimentamos a nossa experiência, e logo usamos essa experiência para formar as categorias que estruturarão o nosso pensamento durante o resto das nossas vidas.

Mas a riqueza do princípio TODO-PARTES-TODO não se extingue aqui. Os estudos de lateralização cerebral mostram que o nosso substrato biológico favorece a aparição destas duas atitudes perante o processamento da informação. O pensamento de dominância esquerda está ocupado com a análise, com os pormenores, com o processamento serial da infindável lista de itens que povoam os nossos conceitos. O
pensamento de predominância direita é encarregue dos conceitos, das associações, das experiências contínuas.

Consideremos o par análise/síntese, outro exemplo da dialéctica que cruza transversalmente a história da inteligência, das tentativas de nos compreendermos a nós próprios, de fazer avançar o nosso conhecimento como espécie, e de construir a partir da herança dos nossos antepassados. Quando analisamos, reduzimos o TODO às suas componentes para as submeter a um escrutínio pormenorizado. Quando sintetizamos, fazemos o caminho inverso: valorizamos as relações de semelhança entre itens para os incluir numa categoria superior que os define e caracteriza.

A distinção geral/particular é análoga. Do pensamento indutivo diz-se que vai do particular ao geral (isto é, generalizando observações particulares), enquanto o pensamento dedutivo faz o percurso contrário, partindo de conceitos gerais aceites para tirar conclusões irrefutáveis ao nível dos factos.

McCarthy e Kolb distinguem diferentes estilos de aprendizagem, caracterizados precisamente pelo seu posicionamento relativamente às coordenadas experiência/abstracção e acção/reflexão, o que não será alheio às descobertas dos estudos de lateralização cerebral.

TODO-PARTES-TODO descreve da forma mais simples a complexidade da aprendizagem humana, a necessidade de uma visão temperada por uma perspectiva flexível sobre a matéria estudada, que possa ser, alternadamente, a panorâmica geral que vemos desde a janela de um avião e a visão microscópica que nos permite captar os pormenores com a melhor definição possível.

Analogamente, o pintor olha de perto o pormenor que acabou de fazer com o seu pincel, e um momento depois, recua alguns passos para observar o efeito global desse gesto, integrado no conjunto. Essa observação global irá ditar o próximo movimento do pincel. Em música, trabalhamos o pormenor de uma articulação como um ourives, mas precisamos de verificar o efeito desse trabalho no contexto. TODO-PARTES-TODO será assim um ciclo infinito de revisão e crescimento.

Texto e Contexto. Eis outra dimensão do conceito TODO-PARTES-TODO. O TODO dá-nos o contexto no qual podemos entender e valorizar o pormenor. Na música, a criação do contexto é tão importante, ou mais, quanto a perfeição do pormenor. O contexto contém a construção, o conceito genérico, a ligação das partes, as relações, a forma, a estrutura, a ideia, a caracterização, o sentido, a intenção (sem contexto não existiriam a ironia nem o humor, por exemplo). Sem contexto, apenas temos música feita de fonemas, de eventos isolados. Sem contexto perdemos, por assim dizer, a gramática e a semântica. 


Na tradição ocidental, grande parte da prática musical é codificada na notação. Por isso, grande parte dos esforços educativos institucionais é gasta na promoção da capacidade de ler notação musical. Ora, perante a notação podemos exibir uma intenção textual ou uma intenção contextual. A primeira é semelhante à leitura silábica própria dos primeiros esforços dos pré-escolares: o esforço da descodificação simbólica é tão grande que não deixa espaço para a apreensão do contexto, isto é, do significado, e muito menos, das subtilezas do sentido.

A leitura musical textual dá preeminência às PARTES (neste caso os eventos isolados), valoriza o rigor literal em detrimento da interpretação unitária ou de conjunto. O conceito é serial: depois do elemento A segue-se, inevitavelmente, o elemento B, etc. Na música assim aprendida, o próprio programa de execução motora está, infelizmente, dependente desta seriação. Esse facto torna a continuidade da execução muito mais frágil, para não falar do resultado musical!

A leitura textual (e a realização musical que esta projecta) pode ser comparada a uma parada militar, em que todos os elementos foram uniformizados na sua aparência e na sua forma de caminhar, para criar uma metáfora da homogeneidade do grupo. Mas se a metáfora da parada funciona como paradigma e modelo da organização militar, o mesmo não se pode dizer da música, onde as PARTES adoptam uma integração e interdependência muito mais complexa.

[A metáfora do desfilar militar é muito eficaz, porque se verifica em muitos planos de significação. A uniformidade dos soldados reforça o sentido compacto do grupo, sublinha a sua capacidade de acção concertada, a sua “solidariedade” interna, a ausência de individualidade que pudesse comprometer a coesão do colectivo, durante uma acção de guerra. Essa ausência torna mais viável (e justificável) o eventual sacrifício individual em prol da missão colectiva].

É curioso que a necessidade de “igualdade” e “uniformidade” rítmica tenha sido tão enfatizada nas aulas de Formação Musical, até ao ponto de perpetuar uma forma de leitura musical rígida (disembodied) e sem nexo musical; essa tendência deu força à ideia de que todas as partes do compasso são iguais – embora qualquer Músico saiba que isso, simplesmente, não é certo.

O percurso entre o textual e o contextual equivale à abertura do caminho da imaginação; promover as relações de alta hierarquia entre as partes; estimular um diálogo integrado de timbres, formas, densidades, ataques, dinâmicas e agógica. Quando o músico é guiado neste domínio, desenvolve a capacidade de aceder ao pensamento de predominância direita, situando as PARTES no TODO que as integra. A seriação estrita de eventos individuais numa sequência executada não compromete, por exemplo, a possibilidade (e necessidade) de que notas afastadas entre si possam “dialogar”, criando conexões perceptíveis entre elas: ao ser executadas com uma dinâmica semelhante, transformam-se num “grupo” autónomo dentro dos fenómenos diversos que as rodeiam. A compreensão e execução da polifonia requerem um jogo dinâmico, da parte do músico, entre TODO-PARTES-TODO.

As variações dinâmicas numa peça remetem para uma noção de espaço e de perspectiva. Nas artes plásticas, falamos de background e foreground. O pintor conhece o artifício para criar a ilusão de distância e de profundidade. Na notação musical, as instruções dinâmicas devem suscitar uma reflexão análoga sobre o espaço. A música que se destaca é a do foreground. A música que nos chega do background é enfraquecida pelo efeito da distância. 


O espaço é um dos contextos da música.

Torna-se possível perceber a noção de estrutura na música para quem apreende o TODO e as PARTES. A música é apelativa para os seres humanos porque activa a memória e a imaginação. Isto é verificável por quem faz música e por quem a ouve. A estrutura da música nasce da alternância de momentos de repetição (aqueles que activam a memória) e de variação ou contraste (aqueles que convidam a participação da imaginação). Percebemos a estrutura na música porque relacionamos as partes com o todo (reconhecemos o rectângulo comparando-o “repetidamente” com o quadrado). A música com excessiva repetição tende a saturar e cansar, porque carece de surpresa e contraste. A música que não usa a repetição deixa-nos com sensação de desconforto, porque nos é negada a participação da memória. O poder narrativo da música é dependente do equilíbrio entre o TODO e as PARTES.

Por último, lembremos que TODO-PARTES-TODO é um conceito dinâmico. Dependendo da nossa atitude – sintética ou analítica? –, assim como do objecto escolhido para observação, tudo pode ser TODO ou PARTES. Uma sonata completa é o TODO, e os andamentos as suas PARTES. Mas um andamento também pode ser um TODO e as suas secções as PARTES. Assim, num compasso, um motivo de 5 notas pode ser o TODO que precisamos de conhecer e de sentir para “colocar” nele cada nota individual com a precisão do ourives.

O indivíduo que aprende inteligentemente, com sentido de consequência, utiliza um zoom mental, que o leva a considerar, alternadamente, uma perspectiva atómica e outra macroscópica. Escolher a perspectiva certa, durante o estudo, é aperfeiçoar a Arte de Aprender.



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